NATAL É
(COMO E) QUANDO O HOMEM QUISER
Ora ao Deus Menino
em palhas
deitado
a comer
toucinho
todo
lambuzado!
Zumba,
zumba, zumba
Dá-lhe,
Dá-lhe, dá-lhe,
Toca-lhe a
Zabumba
Qu’ hoje é
Noite de Natal!
Esta uma das cantigas que grupos de homens e
rapazes munidos da “zabumba” para o acompanhamento musical entoavam pelas ruas
da vila, com paragem a cada porta até esta se lhes abrir e lhes ser oferecido o
pastel ou a filhó e, muitas vezes o copo de tinto acompanhado por pão e “marrã
frita”[1].
Desde o anoitecer até à missa do galo, as cantigas
e as paragens sucediam-se de forma ininterrupta.
Ao bater da meia-noite era a hora da missa do galo.
Praticamente só frequentada por homens e rapazes e motivo de muito trabalho e preocupação
para o Senhor Padre.
Era assim a parte pública do Natal em Arronches. As
luzes apenas as dos “velhos” candeeiros espalhados pelas diferentes ruas da
vila e, nalguns anos, da grande fogueira a arder no Largo da Cadeia.
Mas o Natal era muito mais que a parte trazida à rua
nas vozes dos cantadores e no roncar das Zabunbas.
Muitos dias antes, no seio da família e em
particular entre os mais novos, o nervosismo do Natal, fazia-se se sentir.
Nas famílias de maior tradição católica era a
construção do Presépio na Igreja o maior factor de mobilização. Era necessário
procurar e recolher o musgo, escolher e aprimorar as imagens, garantir a
iluminação acertada.
A construção do Presépio era também “obrigatório”
em cada núcleo familiar. A sua construção e decoração mudava conforme o escalão
social e principalmente económico, de cada família. Só o simbolismo, o musgo e
os pequenos espelhos que se transformavam em lagos ou ribeiras, eram comuns a
todos eles. As imagens, de Jesus, de José e Maria, dos Reis Magos. As figuras
do buro e da vaca, o estábulo e outros adereços iam desde os de cerâmica e de
tamanhos maiores ou menores, aos desenhados em cartão e recortados, dos feitos
pelas mãos habilidosas de pais ou irmãos mais velhos, com arame de fardo ou em
cortiça sempre sob o entusiasmo barulhento dos mais novos de cada casa.
A Noite de Natal era para todos motivo de grande
atenção e também ela se distinguia de acordo com as posses do cada um. A Ceia
mais ou menos farta incluía sempre a “marrã frita” antecipadamente cortada e
colocada a marinar em pimentão e massa de alho até ao momento da fritura e as
filhós e os pastéis que mães e avós amassavam e recheavam na grande mesa junto
à chaminé e o pai ou o avô fritavam no tacho com azeite bem quente colocado no
meio do lume sobre a trempe de ferro.
Ao mesmo tempo e ao mesmo lume, a grande cafeteira
de barro com água a ferver esperava que lhe fosse acrescentado o pó de café, de
mistura ou puro, adoçado depois com açúcar branco ou louro, conforme as posses.
Apesar da brasa que ainda incandescente fora
atirada para dentro da cafeteira para fazer juntar as borras no fundo da
cafeteira, a mãe ou a avó tinha o cuidado de coar o líquido através de um
guardanapo de pano branco para que só o líquido fosse distribuído.
Igual em todas as casas a “zabumba” previamente
preparada pelo pai ou outro adulto da família que havia previamente ido colher
um rebento de cana a um qualquer canavial nas margens da ribeira e havia
guardado com a pele do coelho bravo, que fora almoço ou jantar em dias
anteriores e a panela de barro que deixara de ser usada na cozinha ou que a mãe
“emprestara” para o efeito.
Com toda a família na chaminé à volta do lume bem
aceso comiam-se as iguarias, tomava-se um licor que a avó fizera e todos
cantavam ao Menino acompanhados pelos homens e rapazes que tocavam a zabumba.
A noite terminava em tempos diferentes conforme a
idade.
As crianças, feitas as despedidas, e colocado o
sapatinho ao canto da chaminé para que o Menino Jesus as premiasse com uma prenda
iam para a cama onde a excitação sobre se iriam ou não ter alguma prenda, fazia
atrasar o sono.
Os adultos continuavam a “Ceia” por mais algum
tempo esperando que as crianças adormecessem e os rapazes regressassem da missa
do galo para distribuírem pelos sapatinhos as prendas “do Menino Jesus”: um
chocolate, uma peça de roupa um brinquedo construído em ferro, cortiça ou
madeira, por um Pai mais “artista” e, para alguns mais sortudos…aquela boneca
de cartão comprada às escondidas na última feira ou sorte extrema, aquela
boneca que abria e fechava os olhos contrabandeada pelo doador ou adquirida ao
contrabandista que todos conheciam.
No outro dia, para a criançada era o ponto alto da
festa. Saltar da cama e correr para a cozinha ver o que tinham no sapatinho
eram ritual por todos assumido.
O desenrolar dos “embrulhos” e o admirar e exibir
das pendas e o distribuir de beijos pelos adultos eram a recompensa que todos
os pais e avós tinham direito.
Em minha casa, também assim era. Lembro ainda como
me senti o mais sortudo dos “gaiatos” no ano em que ao lado da sapinho com o
pai natal e o coelho de chocolate estavam dois enormes embrulhos que continham
uma carroça em tamanho pequeno feita pelo meu pai (mestre carpinteiro) e um
cavalo de cartão, montado num estrado de madeira munido de pequenas rodas de
ferro, adquirido em segredo na última feira de Maio e guardado até poder ser
agora equipado com a carroça, objecto da minha enorme alegria e vaidade que me
levou em desfile, a casa de todos os familiares exibindo-os por toda a vila.
Era, ainda, um Natal mais de comunhão que de
comércio. Era mais que o Dia em que a Igreja Católica comemora o nascimento de
Jesus, o Dia da Família. De todas as famílias!
Diogo Júlio Serra
[1] Marrã
frita – independentemente do sexo do animal esta proteína (toucinho e presa)
depois de devidamente temperada e frita passa a feminino e o seu nome é, desde
há muitas décadas: marrã frita.
Sem comentários:
Enviar um comentário