quinta-feira, 2 de setembro de 2021

O(s) AGOSTO(s) da minha infância!

 

O(s) Agosto(s) da minha infância!*



Nos anos 60 Arronches era, como a maioria das nossas vilas e aldeias, um espaço aberto de liberdade e de descoberta para crianças e adolescentes.

Claro que não o era para todos. Era-o para quem, crianças e jovens, ainda não sabia que a guerra colonial os esperava, que o controle social e político imposto aos seus pais e avós ainda estava de “pedra e cal”.

Mas isso são outros contos!

Agosto era então o mês livre das obrigações escolares, mês em que a vigilância paternal afrouxava, o mês em que chegavam os “primos de Lisboa”, que a hortas e pomares da vila os desafiavam que os campos, ali à porta de casa, eram parque de diversão e esconderijo e os rios e ribeiras que cercam a vila espaço de aprendizagem e fruição.

Era também o mês das festas anuais e em particular da festa da Santa Casa a maior e mais representativa festa dos arronchenses.

A praia estava ao alcance de pouquíssimas famílias (contavam-se pelos dedos da mão) os que iam à praia. Só as famílias proprietárias das terras e das gentes “iam a banhos para a Figueira” levando consigo família e “serviçais” e por lá se ficando (em casa própria ou alugada), o mês inteiro.

Para a maioria a “praia”, o local para onde iam a banhos tinha nome mais familiares: açude do Porto Manes, açude d´el Rei, pego da nora, etc.. etc… locais que pela sua profundidade ou pela existência de represas não secavam no verão como sucedia com a maior parte das ribeiras e riachos.

Aos bandos (só os rapazes porque às meninas estavam proibidas essas veleidades) era vê-los, quase sempre sem o conhecimento e muito menos autorização dos pais, escaparem-se para a “banhação”.

Os mais velhos eram os professores e vigilantes. Eram eles quem ensinavam as primeiras braçadas, quem não permitia aos mais novos aventurarem-se para locais onde “não tivessem pé” e muitas vezes quem os transportava (às costas) aos locais destinados apenas aos “eleitos”: os mergulhos da parede da nora da horta do vassalo, para os locais de grande profundidade daquele troço do rio Caia que a represa criada para garantir água aos lagares ali existentes, garantia igualmente a melhor e mais frequentada piscina natural.

E tudo estava bem definido de acordo com a idade dos seus utilizadores. Os mais novos no “açude de cima”, no canal que levava a água ao lagar do Grémio da Lavoura, ali onde hoje está o Centro Interpretativo da Realidade Agrícola – CIRA. Os que já tinham alguma prática, mais à frente junto ao “escamado” e só os mais velhos e já exímios nadadores, com “licença” para mergulharem no “açude de baixo” e mergulharem e nadarem no pego da nora.

Não eram raras as vezes em que, por se “esquecerem” de voltar a casa durante todo o dia ou de informarem sobre a banhação, o regresso era feito descalços, e muitas vezes sem roupa, à frente do chinelo ou do cinto, consoante fosse a mãe ou o pai quem comandava a operação.

Mas ir a banhos era apenas uma, talvez a mais frequentada, das atividades de Agosto. As festas anuais e particularmente a Festa da Santa Casa, eram o ponto alto do verão dos arronchenses. E estas, “mexendo” com todos, jovens e adultos, homens e mulheres de todos os extratos sociais.

A sua importância na vida da comunidade ultrapassava em muito a finalidade de proporcionarem o financiamento da instituição que as promovia e do seu hospital concelhio. Era o momento do reencontro das famílias – aos que permaneciam no concelho, e eram então o triplo do que somos hoje, juntavam-se os que haviam partido para a zona de Lisboa em busca de melhores condições de vida e era também o momento dos “ricos” afirmarem o seu “estatuto e poder” fosse fazendo integrar no cortejo os carros de tração animal carregados de oferendas, (lenha, trigo, etc…) e era, principalmente para os mais jovens, o tempo em que se abriam brechas no controlo social e se permitia o convívio entre rapazes e raparigas.

Na verdade as festas da Santa Casa tinham uma particularidade que, naqueles tempos, fazia toda a diferença: o cortejo de oferendas e as marchas que o integravam. Estas integravam dois grupos distintos. À frende e escalonados por altura as crianças. Eles trajados de campino (vá-se lá saber porquê) levando ao ombro um bordão decorado tendo à ponta um lenço onde se levava uma oferta. Elas com trajes garridos levando no braço uma pequena cesta e nela uma pequena oferenda. Seguia-se o grupo dos “adultos” eles de calça e colete pretos, camisa branca e com cinta vermelha. Elas com vestes minhotas transportando à cabeça um cesto de verga contendo as fogaças que mais tarde, no arraial, seriam leiloadas. Marchavam eles e elas separados pela rua acompanhados pelos acordeonistas e cantando a marcha das festas.

As marchas, uma aposta do então provedor Frederico Santos, impunham um mês de ensaios. Um mês inteiro em que noite após noite rapazes e raparigas sob o olhar benevolente das mães ensaiavam sob a batuta do austero provedor e ao som do acordéon do João Gravito e do pai (o sr. Francisco Chambra) aprendiam a cantar a marcha  (a música da marcha vencedora desse ano do Santo António em Lisboa e para a qual um letrista do concelho – quase sempre o mestre Cleto – escrevia o texto ressalvando Arronches e a sua “Casa Santa”).

Os ensaios tinha lugar no Salão de Festas (espaço único de então) onde hoje está instalado o museu de A Brincar. E, porque as mães ainda conseguiam lembrar-se de serem jovens e o João Gravito era ele próprio um jovem, facilmente se deixavam convencer (umas e outro) para que no final do ensaio e após a retirada do Sr. Frederico Santos, se organizassem animados bailes onde até as mães “davam um pezinho de dança.

Depois, depois eram os três dias de festa. Com o cortejo de oferendas, a tourada - o único momento anual em que a Praça de Touros recebia um corrida de touros com os cavaleiros, forcados e demais participantes a ofertarem a sua atuação e os ganadeiros o oferecerem o curro e o arraial realizado no Largo da Cadeia onde hoje está o jardim com serviço de restaurante e bar instalado na garagem do Sr. Bigares, muitas mesas ocupadas por quem as podia pagar, um estrado onde os mais jovens e mais abastados pagavam para dançar ao som da orquestra vinda de fora e instalada no coreto de ferro previamente montado.

Os mais pobres também tinham espaço nas festas. As mulheres levando cadeiras de casa sentavam-se na parte que dá ao convento da Luz e desse local seguiam o desenrolar de toda a festa. Os homens encontravam espaço para uma bebida nos balcões que ladeavam o Bar e os mais jovens e menos endinheirados criavam fora do recinto um espaço onde podiam dançar sem pagamento. Porque o recinto que os impedia de entrar não impedia a música de sair.

Foram assim os Agostos da minha (nossa) infância.

 Diogo Júlio Serra

*publicado no Noticias de Arronches de Agosto2021


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