O(s) Agosto(s) da minha infância!*
Nos anos 60 Arronches era, como a maioria das nossas vilas e aldeias,
um espaço aberto de liberdade e de descoberta para crianças e adolescentes.
Claro que não o era para todos. Era-o para quem, crianças e jovens,
ainda não sabia que a guerra colonial os esperava, que o controle social e
político imposto aos seus pais e avós ainda estava de “pedra e cal”.
Mas isso são outros contos!
Agosto era então o mês livre das obrigações escolares, mês em que a
vigilância paternal afrouxava, o mês em que chegavam os “primos de Lisboa”, que
a hortas e pomares da vila os desafiavam que os campos, ali à porta de casa,
eram parque de diversão e esconderijo e os rios e ribeiras que cercam a vila
espaço de aprendizagem e fruição.
Era também o mês das festas anuais e em particular da festa da Santa
Casa a maior e mais representativa festa dos arronchenses.
A praia estava ao alcance de pouquíssimas famílias (contavam-se pelos
dedos da mão) os que iam à praia. Só as famílias proprietárias das terras e das
gentes “iam a banhos para a Figueira” levando consigo família e “serviçais” e
por lá se ficando (em casa própria ou alugada), o mês inteiro.
Para a maioria a “praia”, o local para onde iam a banhos tinha nome
mais familiares: açude do Porto Manes, açude d´el Rei, pego da nora, etc.. etc…
locais que pela sua profundidade ou pela existência de represas não secavam no
verão como sucedia com a maior parte das ribeiras e riachos.
Aos bandos (só os rapazes porque às meninas estavam proibidas essas
veleidades) era vê-los, quase sempre sem o conhecimento e muito menos
autorização dos pais, escaparem-se para a “banhação”.
Os mais velhos eram os professores e vigilantes. Eram eles quem
ensinavam as primeiras braçadas, quem não permitia aos mais novos
aventurarem-se para locais onde “não tivessem pé” e muitas vezes quem os
transportava (às costas) aos locais destinados apenas aos “eleitos”: os
mergulhos da parede da nora da horta do vassalo, para os locais de grande
profundidade daquele troço do rio Caia que a represa criada para garantir água
aos lagares ali existentes, garantia igualmente a melhor e mais frequentada
piscina natural.
E tudo estava bem definido de acordo com a idade dos seus utilizadores.
Os mais novos no “açude de cima”, no canal que levava a água ao lagar do Grémio
da Lavoura, ali onde hoje está o Centro Interpretativo da Realidade Agrícola –
CIRA. Os que já tinham alguma prática, mais à frente junto ao “escamado” e só
os mais velhos e já exímios nadadores, com “licença” para mergulharem no “açude
de baixo” e mergulharem e nadarem no pego da nora.
Não eram raras as vezes em que, por se “esquecerem” de voltar a casa
durante todo o dia ou de informarem sobre a banhação, o regresso era feito
descalços, e muitas vezes sem roupa, à frente do chinelo ou do cinto, consoante
fosse a mãe ou o pai quem comandava a operação.
Mas ir a banhos era apenas uma, talvez a mais frequentada, das atividades
de Agosto. As festas anuais e particularmente a Festa da Santa Casa, eram o
ponto alto do verão dos arronchenses. E estas, “mexendo” com todos, jovens e
adultos, homens e mulheres de todos os extratos sociais.
A sua importância na vida da comunidade ultrapassava em muito a
finalidade de proporcionarem o financiamento da instituição que as promovia e
do seu hospital concelhio. Era o momento do reencontro das famílias – aos que
permaneciam no concelho, e eram então o triplo do que somos hoje, juntavam-se
os que haviam partido para a zona de Lisboa em busca de melhores condições de
vida e era também o momento dos “ricos” afirmarem o seu “estatuto e poder”
fosse fazendo integrar no cortejo os carros de tração animal carregados de
oferendas, (lenha, trigo, etc…) e era, principalmente para os mais jovens, o
tempo em que se abriam brechas no controlo social e se permitia o convívio
entre rapazes e raparigas.
Na verdade as festas da Santa Casa tinham uma particularidade que,
naqueles tempos, fazia toda a diferença: o cortejo de oferendas e as marchas
que o integravam. Estas integravam dois grupos distintos. À frende e
escalonados por altura as crianças. Eles trajados de campino (vá-se lá saber
porquê) levando ao ombro um bordão decorado tendo à ponta um lenço onde se
levava uma oferta. Elas com trajes garridos levando no braço uma pequena cesta
e nela uma pequena oferenda. Seguia-se o grupo dos “adultos” eles de calça e
colete pretos, camisa branca e com cinta vermelha. Elas com vestes minhotas
transportando à cabeça um cesto de verga contendo as fogaças que mais tarde, no
arraial, seriam leiloadas. Marchavam eles e elas separados pela rua
acompanhados pelos acordeonistas e cantando a marcha das festas.
As marchas, uma aposta do então provedor Frederico Santos, impunham um
mês de ensaios. Um mês inteiro em que noite após noite rapazes e raparigas sob
o olhar benevolente das mães ensaiavam sob a batuta do austero provedor e ao
som do acordéon do João Gravito e do pai (o sr. Francisco Chambra) aprendiam a
cantar a marcha (a música da marcha
vencedora desse ano do Santo António em Lisboa e para a qual um letrista do
concelho – quase sempre o mestre Cleto – escrevia o texto ressalvando Arronches
e a sua “Casa Santa”).
Os ensaios tinha lugar no Salão de Festas (espaço único de então) onde
hoje está instalado o museu de A Brincar. E, porque as mães ainda conseguiam
lembrar-se de serem jovens e o João Gravito era ele próprio um jovem,
facilmente se deixavam convencer (umas e outro) para que no final do ensaio e
após a retirada do Sr. Frederico Santos, se organizassem animados bailes onde
até as mães “davam um pezinho de dança.
Depois, depois eram os três dias de festa. Com o cortejo de oferendas,
a tourada - o único momento anual em que a Praça de Touros recebia um corrida
de touros com os cavaleiros, forcados e demais participantes a ofertarem a sua atuação
e os ganadeiros o oferecerem o curro e o arraial realizado no Largo da Cadeia
onde hoje está o jardim com serviço de restaurante e bar instalado na garagem
do Sr. Bigares, muitas mesas ocupadas por quem as podia pagar, um estrado onde
os mais jovens e mais abastados pagavam para dançar ao som da orquestra vinda
de fora e instalada no coreto de ferro previamente montado.
Os mais pobres também tinham espaço nas festas. As mulheres levando
cadeiras de casa sentavam-se na parte que dá ao convento da Luz e desse local
seguiam o desenrolar de toda a festa. Os homens encontravam espaço para uma
bebida nos balcões que ladeavam o Bar e os mais jovens e menos endinheirados
criavam fora do recinto um espaço onde podiam dançar sem pagamento. Porque o
recinto que os impedia de entrar não impedia a música de sair.
Foram assim os Agostos da minha (nossa) infância.
*publicado no Noticias de Arronches de Agosto2021
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