quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Os Pais, os Avós e os Enteados da Democracia

Pais, avós e enteados da Democracia!*
No momento em que escrevo tenho à minha frente alguns jornais nacionais e também o nosso Alto Alentejo que anunciam ou comentam a morte do Dr. Mário Soares.
Os elogios fúnebres tratam de enaltecer o seu percurso político e todos o apelidam como “ O Pai da democracia”, presumo que a portuguesa. É um facto inquestionável que o Dr. Mário Soares integrou o núcleo dos combatentes pela liberdade, opondo-se à ditadura salazarista e por isso foi preso e deportado.
Nesta semana em que ocorreu o falecimento do Dr. Mário Soares ficámos a saber (não pela comunicação social dita de referência, que o escondeu), que também falecera um dos muitos que durante a longa noite de terror deram a liberdade pessoal, a segurança, a família e muitas vezes a vida para abrirem caminho à liberdade com que sonhavam num país soberano, livre e democrático.
Este era operário. Trabalhador da Carris desde os 12 anos de idade, lutador antifascista, membro do Partido Comunista Português, pagou o preço que Salazar cobrava a quantos a ele se opunham, preço tanto mais alto se esses opositores fossem operários e comunistas.
Preso em 1959 e condenado a dois anos de prisão é um dos organizadores da fuga de destacados dirigentes comunistas do Forte de Caxias, a 4 de Dezembro de 1961, utilizando para o efeito o carro blindado de Salazar: José Magro[1], Francisco Miguel, Domingos Abrantes, António Gervásio, Guilherme de Carvalho, Ilídio Esteves, Rolando Verdial e o próprio António Tereso.
Também as redes sociais foram instrumento privilegiado para enaltecer o papel do Dr. Mário Soares na “construção” da democracia e foi aí que uma amiga colocou uma frase que me impôs a reflexão que aqui partilho convosco.
 “Não de preocupem com o local onde sepultar o meu corpo. Preocupem-se com aqueles que querem sepultar o que ajudei a criar.”

Foi proferida por um Militar de Abril, um alentejano de Castelo de Vide a quem um inquilino de S. Bento e Belém que condecorava pides recusou uma pensão e ilustra bem o sentir de quantos veem agora “fugir-lhes a paternidade” do 25 de Abril depois de terem sido impedidos de “educar a criança” nos valores e objetivos que presidiram à sua conceção.

Admito que a verdade do que vimos depende do ângulo em que nos posicionamos mas penso ser da mais elementar justiça que quem tem acesso aos instrumentos capazes de modelar consciências esteja “obrigado” a cumprir com as mais elementares regras deontológicas duma profissão que se intitula como “o quarto poder” e se abstenham de tentar reescrever a História.

E não confundamos. Não se trata de diminuir os mortos. Trata-se de censurar os vivos!

A persistirem na atribuição da paternidade a uns deverão homenagear (também) os milhares de Avós que a “criança” teve e os enteados (os militares de Abril) que em nome da “normalidade” foram mandados para os quartéis, para prisão ou para a disponibilidade!

Diogo Júlio Serra

* publicado no Jornal Alto Alentejo de 18-01-17

[1] José Magro, com familiares em Arronches e no Assumar viria a ser o primeiro dirigente do PCP a participar numa iniciativa publica em Portalegre no pós 25 de Abril. Foi ele o principal orador no Comício que o PCP organizou em Portalegre e que teve lugar no Cine-Parque.

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