sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

NATAL DA MINHA INFÂNCIA.

 

NATAL É (COMO E) QUANDO O HOMEM QUISER

 


Ora ao Deus Menino 

em palhas deitado

a comer toucinho

todo lambuzado!

 

Zumba, zumba, zumba

Dá-lhe, Dá-lhe, dá-lhe,

Toca-lhe a Zabumba

Qu’ hoje é Noite de Natal!

 

Esta uma das cantigas que grupos de homens e rapazes munidos da “zabumba” para o acompanhamento musical entoavam pelas ruas da vila, com paragem a cada porta até esta se lhes abrir e lhes ser oferecido o pastel ou a filhó e, muitas vezes o copo de tinto acompanhado por pão e “marrã frita”[1].

Desde o anoitecer até à missa do galo, as cantigas e as paragens sucediam-se de forma ininterrupta.

Ao bater da meia-noite era a hora da missa do galo. Praticamente só frequentada por homens e rapazes e motivo de muito trabalho e preocupação para o Senhor Padre.

Era assim a parte pública do Natal em Arronches. As luzes apenas as dos “velhos” candeeiros espalhados pelas diferentes ruas da vila e, nalguns anos, da grande fogueira a arder no Largo da Cadeia.

Mas o Natal era muito mais que a parte trazida à rua nas vozes dos cantadores e no roncar das Zabunbas.

Muitos dias antes, no seio da família e em particular entre os mais novos, o nervosismo do Natal, fazia-se se sentir.

Nas famílias de maior tradição católica era a construção do Presépio na Igreja o maior factor de mobilização. Era necessário procurar e recolher o musgo, escolher e aprimorar as imagens, garantir a iluminação acertada.

A construção do Presépio era também “obrigatório” em cada núcleo familiar. A sua construção e decoração mudava conforme o escalão social e principalmente económico, de cada família. Só o simbolismo, o musgo e os pequenos espelhos que se transformavam em lagos ou ribeiras, eram comuns a todos eles. As imagens, de Jesus, de José e Maria, dos Reis Magos. As figuras do buro e da vaca, o estábulo e outros adereços iam desde os de cerâmica e de tamanhos maiores ou menores, aos desenhados em cartão e recortados, dos feitos pelas mãos habilidosas de pais ou irmãos mais velhos, com arame de fardo ou em cortiça sempre sob o entusiasmo barulhento dos mais novos de cada casa.

A Noite de Natal era para todos motivo de grande atenção e também ela se distinguia de acordo com as posses do cada um. A Ceia mais ou menos farta incluía sempre a “marrã frita” antecipadamente cortada e colocada a marinar em pimentão e massa de alho até ao momento da fritura e as filhós e os pastéis que mães e avós amassavam e recheavam na grande mesa junto à chaminé e o pai ou o avô fritavam no tacho com azeite bem quente colocado no meio do lume sobre a trempe de ferro.

Ao mesmo tempo e ao mesmo lume, a grande cafeteira de barro com água a ferver esperava que lhe fosse acrescentado o pó de café, de mistura ou puro, adoçado depois com açúcar branco ou louro, conforme as posses.

Apesar da brasa que ainda incandescente fora atirada para dentro da cafeteira para fazer juntar as borras no fundo da cafeteira, a mãe ou a avó tinha o cuidado de coar o líquido através de um guardanapo de pano branco para que só o líquido fosse distribuído.

Igual em todas as casas a “zabumba” previamente preparada pelo pai ou outro adulto da família que havia previamente ido colher um rebento de cana a um qualquer canavial nas margens da ribeira e havia guardado com a pele do coelho bravo, que fora almoço ou jantar em dias anteriores e a panela de barro que deixara de ser usada na cozinha ou que a mãe “emprestara” para o efeito.

Com toda a família na chaminé à volta do lume bem aceso comiam-se as iguarias, tomava-se um licor que a avó fizera e todos cantavam ao Menino acompanhados pelos homens e rapazes que tocavam a zabumba.

A noite terminava em tempos diferentes conforme a idade.

As crianças, feitas as despedidas, e colocado o sapatinho ao canto da chaminé para que o Menino Jesus as premiasse com uma prenda iam para a cama onde a excitação sobre se iriam ou não ter alguma prenda, fazia atrasar o sono.

Os adultos continuavam a “Ceia” por mais algum tempo esperando que as crianças adormecessem e os rapazes regressassem da missa do galo para distribuírem pelos sapatinhos as prendas “do Menino Jesus”: um chocolate, uma peça de roupa um brinquedo construído em ferro, cortiça ou madeira, por um Pai mais “artista” e, para alguns mais sortudos…aquela boneca de cartão comprada às escondidas na última feira ou sorte extrema, aquela boneca que abria e fechava os olhos contrabandeada pelo doador ou adquirida ao contrabandista que todos conheciam.

No outro dia, para a criançada era o ponto alto da festa. Saltar da cama e correr para a cozinha ver o que tinham no sapatinho eram ritual por todos assumido.

O desenrolar dos “embrulhos” e o admirar e exibir das pendas e o distribuir de beijos pelos adultos eram a recompensa que todos os pais e avós tinham direito.

Em minha casa, também assim era. Lembro ainda como me senti o mais sortudo dos “gaiatos” no ano em que ao lado da sapinho com o pai natal e o coelho de chocolate estavam dois enormes embrulhos que continham uma carroça em tamanho pequeno feita pelo meu pai (mestre carpinteiro) e um cavalo de cartão, montado num estrado de madeira munido de pequenas rodas de ferro, adquirido em segredo na última feira de Maio e guardado até poder ser agora equipado com a carroça, objecto da minha enorme alegria e vaidade que me levou em desfile, a casa de todos os familiares exibindo-os por toda a vila.

Era, ainda, um Natal mais de comunhão que de comércio. Era mais que o Dia em que a Igreja Católica comemora o nascimento de Jesus, o Dia da Família. De todas as famílias!

 

Diogo Júlio Serra



[1] Marrã frita – independentemente do sexo do animal esta proteína (toucinho e presa) depois de devidamente temperada e frita passa a feminino e o seu nome é, desde há muitas décadas: marrã frita.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

PODER LOCAL DEMOCRÁTICO, O SONHO CONTINUA!

 


PODER LOCAL DEMOCRATICO, O SONHO CONTINUA!*

No momento em que escrevo, dia 12 de dezembro – domingo, cumprem-se 45 anos desde esse outro domingo em que os portugueses e as portuguesas puderam pela primeira vez eleger os seus autarcas. Oito meses passados desde a primeira eleição livre e em que todos e todas, maiores de idade, puderam votar e elegeram a Assembleia Constituinte, o povo português voltava a ter a palavra para eleger o poder que lhe estava (e está) mais perto.

No distrito de Portalegre, os quinze executivos então eleitos e que iriam substituir as Comissões Administrativas eleitas pelos seus concidadãos para substituírem os autarcas nomeados pelas estruturas do fascismo mantinham as cores (politicas) dominantes na Assembleia Constituinte.

Eram eleitos do Partido Socialista doze dos 15 Presidentes de Câmara e os restantes três foram eleitos nas listas da FEPU, uma coligação constituída pelo PCP e pelo MDP/CDE mas, e fruto da inteligência da Lei das Autarquias, em cada executivo estavam representadas a quase totalidade das forças políticas presentes no distrito e os rostos que nas comissões administrativas haviam garantido a transição entre os executivos nomeados e os agora eleitos.

Em Portalegre, a vitória eleitoral do Partido Socialista colocou na cadeira presidencial o bancário Fernando Soares, acompanhado pelo, até à data, Presidente da Comissão Administrativa, Dinis Parente Pacheco e do eleito pela população em Assembleia Popular para esse cargo mas que declinou a favor de Parente Pacheco, o então jovem professor Adriano Capote, e também eleitos do PPD e do CDS: Manuel Calado, funcionário da Robinson e António Carrilho, médico veterinário. Do elenco faziam ainda parte mais dois eleitos pelo Partido Socialista: António Martelo, bancário e Domingos Sousa, engenheiro.

Que o legislador tinha razão ao decidir que os executivos municipais eleitos pelo método de hondt deveriam colocar nos executivos todas (ou parte) das cores que matizavam o ambiente político de cada território é-nos mostrado por esse executivo e pela obra que nos deixou.

Quatro décadas e meia depois constatamos quer a importância do Poder Local Democrático quer as profundas alterações sofridas pelos eleitos e pelas forças políticas que representam e em particular a involução verificada na percepção da importância e especificidade deste poder que é local e cuja proximidade com os cidadãos e os problemas o fazem ser diferente.

Hoje, e sem necessidade de saímos de Portalegre, constatamos a “parlamentarização” dos executivos e a incapacidade de governar os concelhos sem que, quem os preside detenha a maioria absoluta dos seus membros e, fruto dessa incapacidade de perceber que os entendimentos normais em mais de 95% das decisões do executivo têm que ser conseguidos, também nos restantes 5%. Mais, é preciso perceber que a receita para que tal possa acontecer não é o “comprar” de maiorias artificiais mas sim o estender do diálogo e da compreensão até atingir o consenso.

É difícil? É! Mas será tão menos difícil quando se têm como balizas (agora é moda dizer-se redlines) a Constituição da República e os interesses das populações que nos/os elegem e que dizemos/dizem ser o motivo da nossa/sua acção.

Mas regressemos a 1976 e às primeiras eleições para as autarquias e festejemos o Poder Local Democrático que ali se começou a construir. Festejemo-lo recordando os seus obreiros.

Dos quinze Presidentes de Câmara eleitos em 1976, no nosso distrito temos, felizmente, no nosso convívio quatro desses cidadãos. Quatro Presidentes eleitos pelos seus concidadãos de entre os “homens bons” de cada concelho: João Manuel Pista, bancário, eleito Presidente de Alter do Chão; Manuel Rui Nabeiro, industrial, hoje Comendador, eleito Presidente de Campo Maior; António José Falé Canoa, comercial, eleito Presidente de Monforte e Fernando Soares, bancário, hoje Comendador, eleito Presidente de Portalegre.

A pandemia obrigou ao adiar de uma justíssima homenagem que o Grémio Transtagano lhes preparara e que deveria ter ocorrido no passado dia 4 em Arronches e Monforte e que espero possa ser retomada quando comemorarmos Abril mas não pode fazer-nos esquecer quer o seu exemplar trabalho (naquele primeiro mandato e em todos os outros em que continuaram como autarcas) quer a importância de continuarmos a usufruir do Poder Local Democrático.

Não pode igualmente manter esquecida a necessidade de retomarmos os valores e os caminhos que o legislador consagrou em lei e a prática das várias décadas mostrou serem a sua maior valia: a especificidade deste “poder”, a importância de ter executivos que espelhem o todo de cada território e a “obrigatoriedade” de ultrapassar todas as barreiras que impeçam atingir o consenso na resolução de problemas que são consensuais e no aprovar das ferramentas que os permitam resolver.

Este é, penso, o caminho que temos que retomar!

Viva o Poder Local Democrático!

Diogo Júlio Serra

* publicado no Jornal do Alto Alentejo em  15-12-21

quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

Ninguém quer trabalhar? Pois!

 

Ninguém quer trabalhar? Pois!

 


Em 2021, quarenta e sete anos depois da Revolução do Cravos e quarenta e seis após o golpe que a travou e permitiu o regresso dos velhos poderes, o Governo de Portugal, pela voz do seu ministro da Economia, anunciou ao país ter decidido premiar os patrões que têm trabalhadores abrangidos pelo aumento (miserável) do Salário Mínimo Nacional.

Pelo segundo ano consecutivo, o governo premeia os patrões cujas políticas salariais são o espelho de um país confinado ao espartilho do trabalho mal remunerado, de baixa e muito baixa produtividade, da precariedade e da submissão ao “subsidiozinho”.

E não se pense que a medida visa apoiar os pequenos e muitos pequenos empresários que, também eles se têm que multiplicar em “invenções “ para conseguirem sobreviver.

O Governo, o mesmíssimo governo e o partido que o suporta, que se recusam a revogar as normas mais gravosas da legislação laboral impostas pelas troikas internacional e nacional, que enquanto empregador está a exaurir os serviços de quadros médios e superiores necessários ao funcionamento eficaz do aparelho de Estado. Que corre o sério risco (será que não é isso que quer?) de ver paralisados o Sistema de Ensino e o Serviço Nacional de Saúde por incapacidade de repôr os que se reformam e atrair novos quadros, apresenta-se “orgulhoso” em subsidiar os patrões que pagam o SMN com um subsídio por trabalhador abrangido de 12 euros/mês.

As centrais patronais, como já é habitual, lá vieram a público dizer que é pouco mas é um bom sinal. Vislumbram – como eu – que independentemente do montante é um sinal de afirmação que o partido socialista e o seu governo darão continuação à vontade que os levou a derrubarem o seu próprio governo – o regresso às políticas de favorecimento do capital em desfavor do trabalho e dos trabalhadores.

E tudo isto num tempo e num país em que a parte da riqueza produzida e depois distribuída para o trabalho é de pouco mais de 36% já abaixo da média da “europa comunitária”.

Quando são vários os estudos que nos mostram que em Portugal, hoje o número de pobres aumenta e entre eles e com um número muito significativo há portugueses que empobrecem a trabalhar. Um quinto da população portuguesa, segundo o INE vive na pobreza e neste número 60% são trabalhadores efectivos. A análise aos perfis dos empregados mostra que representam 32,9% dos pobres e 10,8% do total da população com trabalho.

Tudo isto, e não é nada pouco, num tempo e num país em que a cada dia patrões e a sua comunicação social, inundam as nossas casas e pensamentos com a falta de gente para trabalhar, com hotéis, restaurantes e fabricas que não conseguem recrutar pessoal, com o pessoal do campo a dizer-nos que é ano de fartura de azeitona mas que não conseguirão gente para a recolher.

Com um governo apostado em governar (como diz mas não faz) à esquerda seriam possíveis tais situações?

Mais, será possível a um país, seja qual seja, que aposte no Turismo (ou qualquer outro sector económico) como sua principal ferramenta de desenvolvimento e permita a esse sector manter-se como o que mais mal paga aos seus trabalhadores, que fomente a precariedade e a sazonalidade. Um sector que não forme, não cuide, não conserve?

Não, não é possível. Um país desenvolvido e moderno tem que assentar num pro­jecto de de­sen­vol­vi­mento cre­dível e sus­ten­tado. Deve as­sentar, numa época em que se de­sen­volvem novas tec­no­lo­gias (num quadro de en­ve­lhe­ci­mento da po­pu­lação e de uma acen­tuada quebra de­mo­grá­fica), so­bre­tudo no de­sen­vol­vi­mento e en­ri­que­ci­mento hu­mano. Deve apostar de forma inequí­voca na edu­cação, na for­mação, na valorização do trabalho e dos trabalhadores.

Que pensemos nisto, todos, quando fizermos as nossas escolhas!

Diogo Júlio Serra.