sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Dia 1 da idade 3!

Dia dezassete do ano da graça de dois mil e dezoito.
Manhã cedo. A companheira de, já (?) trinta e oito anos e o neto ainda dormem. 
Acordado pelas seis décadas e meia de vida que hoje se cumprem fico de olhos fechados a ver desfilar toda uma vida passada entre Arronches e Portalegre e vivida com intensidade e alegria, porque preenchida no desempenho de funções que me realizavam e acompanhada por familiares e amigos todos eles cúmplices e parceiros desta caminhada que aqui me trouxe.
Revivo momentos que me marcaram profundamente e cenas avulsas mantidas no baú das minhas recordações.
Algumas dessas imagens têm mais de sessenta anos e no entanto consigo recordá-las com toda a nitidez: uma visita a Elvas, a casa da tia Maria da Alegria, ainda com a minha mãe, um dia passado em casa da Mariazinha - só muito mais tarde soube que essa "estada" fora consequência direta do falecimento precoce de minha mãe, uma ida, com o meu pai, à nossa casa no convento e vê-lo à luz de um candeeiro a petróleo, desfazer a barba e depois, enquanto colocava uma gravata preta, procurar que eu não fizesse muito barulho. 
Cenas do quotidiano em casa da avó Margarida,com quem fui morar entre os três e os cinco anos e as "incursões" à barbearia do tio Cleto para cortar o cabelo. Durante anos era ele quem decidia quando o cabelo farto e espetado, deveria ser objeto de desbaste e apesar de ele já não estar entre nós a barbearia Cleto perdura e foi aí que sempre, com apenas duas excepções, o meu cabelo foi cortado. Uma vez ainda miúdo, em Lisboa, levado ao barbeiro da capital pela tia Armandina e muito recentemente uma incursão ao cabeleireiro perto de casa.
Mas neste reviver de emoções não deixaram de aparecer as recordações dos tempos, e dos amigos, de escola. O primeiro dia de aulas com o professor Virgílio, o "respeitinho" à "menina" Ilda Mendes, as brincadeiras, os jogos e as "brigas" com o "Gato Bravo", o Mendes, o João Tenório, o Xico Velez, o Daniel, com os primos Artur e "Manel" Joaquim. 
As aventuras na rua do Paço capitaneadas pelos Zé alfaiate e o irmão, assim designados por serem filhos do alfaiate ali sedeado, o desconforto que me causavam quer a violência do professor Virgílio sobre o Manuel "Galarito"- entre outras sevícias gostava de lhe pisar os pés descalços e gelados pelos frios do inverno, quer o "tratamento" dado pela sociedade de então ao Sr. Valente - Um homem pobre, com muitos filhos que sofria de problemas da mente e a quem a GNR prendia sempre que, na sua doença, persistia a desfilar com os filhos pelas ruas da vila. 
Esta uma memória que sempre preservei a par de outra igualmente brutal - o ver chegar ao Largo da Cadeia, rodeadas de praças da GNR, duas mulheres ciganas, "apanhadas" a roubar e transportando à cabeça o produto desse roubo: um cesto de favas que haviam ido colher para dar de comer aos filhos. O aparato policial, a prisão que se seguiu e a carga policial sobre outros membros da etnia que se juntavam a protestar.
Já homem tive o prazer imenso de testemunhar a passagem de um filho do Sr Valente, pelo comando do Posto da GNR de Arronches. O cabo Caiadas, meu companheiro de escola e amigo "vingava" assim - nem sei se recorda este passado que cito - a forma como a sociedade de então utilizava a GNR, força repressiva do regime, em substituição dos serviços de saúde que só muito mais tarde, com a democracia politica vieram a instalar-se.
Muitas outras recordações me visitaram esta manhã. Na sua esmagadora maioria, boas recordações.
A escola primária e os banhos no açude da ribeira do Caia, o início do trabalho, com 11 anos, na oficina da família, a passagem para o Café Lusitano, aos 14 anos, o inicio dos estudos enquanto "adulto" no colégio da "batata"e a desilusão de não poder continuar por não ter ainda dezasseis anos, a passagem pela telescola para fazer o segundo ano, as noites passadas no casarão do Largo 1º de Dezembro para conseguir o 5º ano, a passagem para o Jornal a Rabeca - verdadeira universidade que me permitiu "compreender o mundo em que vivíamos". O dia da liberdade e os anos da brasa que intensamente vivi.
Depois, depois o Manuel acordou e terminou o tempo das recordações.
O Manuel, o meu neto mais velho, (cinco anos feitos em Maio) encarregou-se de me lembrar que a principal "tarefa" de um "velhote" com 65 anos é  garantir que possa continuar a viver no corpo e na memória dos que se lhes seguem e neste caso têm nome: Manuel e Matias.
Agosto de 2018, ao dia dezassete.


Sem comentários: